Cruz Costa foi meu professor e meu amigo. Era um homem adorável, delicadíssimo, sempre de bom humor, disfarçando as pesadas amarguras da vida por meio não apenas de uma educação impecável, mas da ironia irreverente. Convivemos muito e até fomos juntos ao Uruguai para um curso de férias – ele sempre tratando o antigo aluno com a maior solicitude. Era informadíssimo, tinha uma cultura densa e múltipla, nascida da curiosidade por vários setores: filosofia, sociologia, literatura, história. Filho único de pais abastados, a sua formação foi a do gentleman* culto que lê, observa, segue cursos aqui e fora, viaja, como quem está se preparando interminavelmente para algo que não sabe direito o que possa ser. Depois de ter começado e largado o curso médico no decênio de 1920, já tinha trinta anos quando este algo apareceu sob a forma da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Cruz Costa foi o inscrito número um e mais tarde o orador da primeira turma, cujo ato de formatura sacudiu a classe média e os intelectuais da São Paulo provinciana de1937, por causa do discurso do paraninfo, Júlio de Mesquita Filho, homem sem papas na língua, que fez reflexões consideradas acintosas pelas faculdades tradicionais, pois mostrava que a de Filosofia vinha inaugurar finalmente o saber desinteressado, que não separa o ensino da pesquisa e se torna fonte de novos saberes. O discurso de Cruz Costa fere com mais discrição teclas parecidas, dizendo coisas como: “Era necessário, portanto, que o nocivo regime individualista de autodidatas tivesse fim, pois mostrava-se incapaz de constituir base para a cultura nacional”. Por isso, tinha dito antes, prefigurando a própria carreira: “A nossa missão, quaisquer que sejam os caminhos que agora tenhamos de trilhar, está intimamente ligada aos destinos da Universidade. Interessa-nos altamente a sua existência e a sorte que lhe está reservada, porque o seu destino se confunde com o nosso.” De fato, o rapaz meio diletante, que se orientava na cultura segundo o capricho das veleidades, começava a viver uma coisa nova no Brasil, para ele e para tantos mais: a carreira no setor das Humanidades.
Antonio Candido, Recortes.
*Gentleman (ing.): homem de fino trato, de boa educação. Tendo em vista o processo de adjetivação presente neste excerto, é correto afirmar que, no texto, NÃO ocorre o emprego de adjetivos: *
1 ponto
que exprimem conceitos quantitativos
em forma superlativa
antepostos em relação ao substantivo a que se referem